segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Esse saiu ontem no Blog da Ana Ju, ELE NÃO QUIS POSTAR. Vale a pena acompanhar.


(Domingo, 9 de Novembro de 2008)

uma lembrança; (o dia que o COLETIVO invadiu a Vila Maria)

tava guardado, resolvi postar. pra poder me fortalecer e querer mais. (e incrível como este som do Kamau descreve este domingo).
muitoaxépraquemlutaenãodesiste.
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Samba sem pandeiro

A descarecterização de um movimento (este texto é um e-mail de agradecimento enviado ao pessoal que esteve com nós neste 29.3 quando atravessamos as portas e grades amarelas e passamos o dia do lado de lá.)

Onze da manhã. Horário marcado há uma semana, uma tensão na mochila, mas muita vontade de que tudo desse certo. Solzão estralava do lado de fora, era dia de visita e por isso mesmo rolava já um certo desconforto por parte daqueles que coordenam o rebanho – assim como gado. Uma hora e meia de espera, do lado fora quem quer entrar e de lá dentro centenas esperam meses e anos para sair. Paradoxos de uma terra sem dono, de comunicação difícil, de olhares de reprovação.
Passamos pelo portão. Sem bom dia de quem se acostumou a tratar o próximo com tapa na cara. E aí começaram a nos despir. Bonés, pulseiras, relógios, colares...Quem quisesse ficar de boné, teria de vestir uma calça de moletom que eles tinham guardadas para casos assim. Grande avanço: “foram todos de bermuda”, eles disseram. Naquele sábado de sol, o Hip Hop foi sem boné. Sem retórica, até porque ali quem fala por último dá ordem, e ordens, em terra de gado marcado, são obedecidas.
O programado não pode ser cumprido. Lanche não entra, material para o estêncil também não. O break, também não. ‘Menor de idade só aqueles que a gente sabe tomar conta’ – e ainda dizem com sorriso sarcástico. “Mas não tinham te avisado?’, “Não, não mesmo’.
A disponibilidade do diretor era de cinco minutos. “Infelizmente não vou poder acompanhar as atividades porque eu tenho uma reunião fora daqui”, “Ok”, sem mais palavras porque até então a censura descia guela abaixo. Entrega um cartão com a foto do modelo da Fundação – aquele amarelinho com azul. Alienante, quando se para pára pensar na conotação da cor amarela....”Não liberei a TV Cultura para entrar neste sábado, mas quando vocês voltarem, eu vou pedir para que eles venham”, “Ok” - mais uma vez antes que eu te mande pra puta que o pariu”.
“Então, os grupos tocam ali, e os meninos acompanham os shows sentados”, “Sentados??? Impossível”. “Mas então se eles ficarem em pé não vão poder passar da metade da quadra”, “Ok” – mais uma vez por não querer arrastar a discussão.
E entre censura, poda, restrição e reprovação e oks, o dia passou sem relógios.
“Pede pra eles não dizerem muitas gírias nas músicas”, “Nossa, você ouviu o que ele disse?”, “Ah não, deste jeito não pode”, “Quem ele tá chamando de vagabundo na música?”, “Olha o céu, vai chover, precisamos terminar isso logo”, “Vamos lá pra dentro comigo”... e até que a história do tapa na cara veio a tona e as justificativas tiveram de vir do outro lado... milhares, infundadas. “Mas o funcionário foi afastado”, “Mas isso é o mínimo que se pode fazer”. “Mas quando eles têm atividades fora da Fundação, eles vão com escolta, mas não para repreender, eles até almoçam juntos com a polícia” .... “Nooossa, que legal. Vamos voltar porque já são cinco e dez” – lá dentro tinha um relógio pra situar o tempo naquela tarde ardida.
O tapa na cara, vindo de um funcionário em um dos adolescentes que estavam ali naquela tarde quente, pode ser que doa menos do que o descaso, os olhares de reprovação a cada gesto que era feito, a censura que tentaram nas nossas palavras, a descaracterização do nosso estilo. A violência muda machuca mais ou tão mais que agressão física. Ela é sutil e disfarçada de regra, nos impossibilita de argumentar, mesmo que os argumentos sobrem e venham de todos os lados. Em 50 ali, nós ainda éramos nada, e aliados aos adolescentes, nos tornamos ameaça.
Com todos os obstáculos e forças nos puxando ao contrário, a nossa agressão a eles veio em palavras, não há como ficar quieto frente a tanta repressão, desencontro e falta de crédito que deram ao trabalho que todos ali estavam dispostos a fazer. A gratidão dos adolescentes por nós foi o combustível para seguir até que o som fosse cortado. A festa termina sob a declamação “Todos pra sala de recreação, e ai a-ca-bou”, soletrado, pausadamente pra mostrar definitivamente quem era que mandava ali. Nos formulários preenchidos por eles, ficou claro o medo desta violência muda, que certamente eles sofrem todos os dias, do acordar ao dormir. È como se ali, eles estivessem sendo ordenados a não pensarem, a não questionarem, para assim manterem o eterno ciclo, da liberdade à prisão. Mantendo a máquina abastecida de violência, descaso, repressão e desigualdade. Sem estímulo para pensar, eles não têm vias para expressar o que sentem e já que é assim, eles continuam a sair e voltar lá pra dentro.
Não houve tempo para que cada um de vocês fossem agradecidos por terem participado, porque haviam algumas situações a serem amenizadas e debatidas com os coordenadores. Não há como calar quando se vê e se sente a injustiça vinda de quem se disse a favor da diversidade e da educação contra a violência.
Talvez agora eles estejam pensando que não voltaremos mais, que já desistimos, que assim como eles fazem com aqueles adolescentes, conseguiram fazer com nós. Mas mesmo que a nossa volta não seja resolvida através das ‘amenidades’ necessárias para não gerar conflito, temos força através do próprio estatuto da Fundação - que na palavra impressa lá no papel, diz que há o direito dos adolescentes terem espaço adequado e atividades culturais para que possam se ressocializar de maneira digna. Além disso, a liberdade de expressão também é assegurada por lei. E já que ela funciona tão bem para que muitos fiquem presos, desta vez ela também irá valer para que fiquem livres – mesmo que este livre esteja restrito a quatro muros de concreto.
rabiscado por anaju às 14:29